Preito à Julia

Preito à Julia

Lucas levou a cerveja aos lábios, deixando que o sabor fermentado inundasse seu paladar, pouco depois restou apenas o gosto de álcool. Ela escurecia o copo e deixava uma espuma barrenta escorrer aos poucos como gotas em uma janela depois da chuva. As manhãs eram as piores e por acaso também chovia. Lá fora o chiado era entrecortado apenas pelos carros passando rápido na estrada, os outros sons da cidade eram distantes.

O bar estava deserto, só havia ele ocupando as cadeiras. Um sujeito atarracado de nariz adunco ligou a tosca televisão pendurada na parede entre os ladrilhos quebrados.

– Desliga essa porra. – O homem pareceu despertar de um transe quando ouviu a voz de seu único cliente, arqueou as sobrancelhas e hesitou por um momento antes de dar de ombros e finalmente desligar o aparelho.

Lucas respirou o silêncio que pairou enquanto divagava. O copo cheio o encarava na madeira escura manchada por círculos de bebida. Pesou em Julia, sempre era atraído para aquele lugar por causa dela. Não fora ali onde se conheceram? Navegou em sua mente pelo vestido vermelho até as marcas nas costas do cabelo molhado. As pessoas com roupas são de muitas maneiras mais bonitas do que nuas. Quando estão vestidas tem algo a esconder, possuem segredos.

Mas Julia não estava ali e o vermelho reduzira-se á uma mera representação. Ouvira falar uma vez de uma Síndrome de Jerusalém, as pessoas tinham alucinações, tornavam-se psicóticas e acabavam internadas. Elas tinham a sensação de ser o messias, tinham a necessidade de serem diferentes, mas era tudo por causa do que isso representava. Ninguém queria ser esquecido.

Aquele lugar também era uma representação. Tinha um espaço especial em um canto de sua mente. Quando vira pela primeira vez os cabelos negros e o rosto corado de Julia ali pensou nela como uma porcelana em uma prateleira que tremia muito, mas quem caíra da estante fora ele, apaixonara-se assim que a vira.

As pessoas aparecem, ficam um tempo em sua vida e depois somem do nada.

Tomou mais um gole descansando a cerveja ao lado das flores que trouxera, algumas estavam amassadas pelo descuido. O vermelho dos cravos adquiria um tom opaco e insosso por causa da iluminação do bar, achou que lá fora eles ficariam mais lívidos. Estavam adornados por flores de sabugueiro.

Quando se deu conta já estava na terceira cerveja. Levantou pegando seus pertences e puxando o dinheiro da carteira. O barman parecia um corvo com aquele nariz e não o encarou satisfeito, mas sua expressão amenizou quando ele reparou nos cravos debaixo do braço de Lucas.

– Dia ruim, hein? Eu namorei minha esposa no ensino médio e depois de trinta anos reencontrei ela, agora estamos casados. – Ele pensou por um momento antes de completar – Há muitos outros peixes no mar! –

Lucas forçou um sorriso, entregou o dinheiro e saiu do bar. Caminhou até o final da rua, virou à esquerda e entrou por um grande portão com barras de ferro negras. A chuva estava parando agora. Andou por entre as lápides e foi direto até ela.

 

JULIA SILVESTRE STOTZ

AMADA ESPOSA E FILHA

1990 – 2016

PARTIU DEIXANDO SAUDADE

 

Depositou as flores confortavelmente no mármore depois de retirar outras eu já estavam secas, o plástico estava pintalgado de pequenas gotículas.

Ele não iria esquecer.