A queda de Brastívia

 

A queda de Brastívia 

 Ainda era criança quando o governo da Brastívia fora derrubado. Possivelmente tinha doze ou treze anos e não conseguia entender muito bem toda a estratégia política maquiada de revolução. Uma revolução majoritariamente dominada pela elite e pelos meios de comunicação.

 Meu pai, um trabalhador da área siderúrgica e minha mãe dona de casa, faziam o que podiam para colocar comida na mesa. De vez em quando faltava, mas sempre tínhamos uma segunda opção mais barata. Lembro me que em uma semana eu comi ovos todos os dias. Mas nunca reclamei.

 O governo que tínhamos na época não era nem de longe o melhor, mas tínhamos medidas estatais que garantiam o provável acesso à comida, água, moradia e trabalho. Algumas das coisas que você nem percebe que possui, até o dia que as perde. Quando isso acontece, tornam-se mais importante que qualquer outra futilidade presente na sua realidade.

 Lembro que com meus dez anos de idade, meu pai fazia planos para me colocar na Universidade Superior Estatal de Fevereiro Lago, estado onde morávamos: Incrivelmente populoso e especulado por grandes empresas de capital privado.

Vem uma crise por aí. Quando falta dinheiro, a primeira coisa a ser tomada da população por governos é a fonte de ensino e educação. Pois gasta muito e é vista como supérfluo e ascendente a revolução. – Meu tio insistia em cotar-lhe o barato dizendo.

 À época, eu nem sabia o que era faculdade, muito menos que o ensino era a principal fonte de melhora de nossa realidade precária, ignorada por governos estatais e massacrada pelos ideais privados. Como criança eu ignorava esses tópicos, hoje já adulto eu não consigo ver solução para aquela época.

 Dois anos se passaram, e parte da população dominada por burgueses e a elite com o apoio do mercado internacional pressionava ainda mais o governo a retirar-se. Este, por sua vez vai de contra o movimento opositor dizendo ser completamente contra a renúncia. O clima em Brastívia esquentara e meus pais me protegiam todas as vezes que saímos para ir ao mercado.

 Hoje me recordo de um dia que me levaram à feira depois de algum tempo comendo ovos. Meus pais foram colocados contra a parede sendo questionados por dois ou três indivíduos se eram a favor do partido vermelho, ou do partido azul. Minha mãe apertou minha mão forte, suando. Ao olhar para seus olhos, via lágrimas cristalinas escorrerem enquanto meu pai era espancado por dizer que não acreditava em política. Os homens largaram uma faixa azul por cima de meu pai ensanguentado. Esse havia sido o meu primeiro contato com a política.

 Meu pai passou a receber um auxílio do governo pois ficara impossibilitado de trabalhar na siderúrgica por conta de sua agressão. Após alguns meses, minha mãe foi forçada a arrumar um emprego para complementar nossa renda e eu, tinha entrado na escola ginasial.

 O governo após resistência, havia sido retirado. Mudaram as faces, mas não o sistema. Um novo governo liderado por um ex empresário havia sido instaurado. Claramente, ele não estava ali para governar ao povo, nunca esteve. Sua presença era para garantir interesses de empresas privadas, dos mais favorecidos e dos mercados internacionais. Cortes e mais cortes foram feitos em seu governo que se perpetuou por mais alguns anos. Para não ir de contra o povo, distribuía migalhas constantemente perpetuando-lhes a esperança. Os grandes investimentos estavam sendo feitos, para gerar lucros aos cofres privados. Até que seus erros começaram a ser incômodos à elite.

 Eu não pude entrar na faculdade de Fevereiro Lago, pois esta havia sido comprada por um grupo educacional de fora, com a justificativa da necessidade de privatização. O que fez com que eu jamais pudesse arcar com as parcelas do curso e fazer meu pai realizado. Mesmo porquê alguns meses depois, meu pai havia pego uma pneumonia e faleceu. Minha mãe continuou trabalhando, pois ela não gostaria de que faltasse comida, enquanto eu ia para a União Nacional de Ensino. Uma instituição comunitária sem fins lucrativos que formava alguns poucos cursos.

 Meus anos como estudante foram marcados por um governo recusado por todas as classes sociais (Inclusive pela que o apoiara: Quem pensava ser da “elite”). No fim, já estávamos perto de mais um período de eleições.

No meio da multidão, um nome era sempre ouvido.

-Bolshoi! Bolshoi! –

 Bolshoi Navarro, um ex militar que entrou para a política era clamado pelo povo, como a solução das mazelas do estado e esperança de uma melhora na realidade. Dentre burgueses e proletários, seu nome ecoava dentre as multidões como opção de uma milagrosa tomada de protagonismo para Brastívia. Eu, herdara de meu pai a descrença com a política.

 Navarro era um homem bruto, que resolvia tudo na marra. Havia entrado para a política e se envolvido em diversos embates com opositores. Mesmo suas posições mais execráveis eram aplaudidas de pé pelo povo. Este por sua vez constantemente maltratado pela realidade medíocre que Brastívia o proporcionara.

 Quando eu era criança tinha um certo ditado que minha mãe costumava dizer ao cuidar de mim quando eu ficava doente:

O remédio que aparentar ser a solução mágica e instantânea para um problema, é o que terá mais efeitos colaterais. – Eu havia entendido tal fala, até presenciar os anos que seguiam a candidatura de Navarro.

 Eu me formei e comecei a lecionar para as crianças mais pobres de Fevereiro Lago, descrente da melhora do governo. Alguns poucos meses depois, Bolshoi assumiu o governo. A população estava feliz. Até hoje não entendo o porquê.

 A cada comício, embalados de sorrisos por Navarro o povo gritava:

– Acabe com esses bandidos, Navarro! Acabe com os porcos vermelhos do governo! Acabe com os azuis também! –

 Bolshoi dizia ser defensor da matança de “vagabundos”. Suas palavras ecoavam o milagre da segurança pública e oferecia tranquilidade ao povo que sonhava em poder andar nas ruas. Bom, pelo menos a parte do povo condizente com sua ideologia e que tinha renda para andar nas ruas.

 Constantemente eu me perguntava quem eram os “vagabundos” exaltados nesse cenário. Quem eram os bandidos que Navarro pintava como demônios? Seria Bolshoi o Messias, ou seria o Diabo vestido como tal?

 Minha mãe não viveu para ver, mas eu sim.

 No primeiro ano de seu governo, as primeiras medidas de Navarro foram bem simples: Utilizar a força para garantir seus interesses individuais ideológicos. Tomou o controle do congresso e do senado, expulsou deputados e senadores como minha mãe fazia com ratos que invadiam nossa cozinha. Prendeu juízes do supremo, dentre outros opositores. Alguns foram mortos. Ele dizia ser necessário que morressem alguns inocentes. O povo o exaltava. Enfim, Bolshoi tinha limpado a casa, exterminado os sanguessugas e vagabundos. Tudo pelo bem do povo.

 Em pouco tempo não existiam políticos opositores, nem juízes, nem partidos. Só existia o próprio Bolshoi Navarro. Três de seus oito filhos assumiriam logo em seguida posições estratégicas nos comandos das forças nacionais. Exército, Marinha e Aeronáutica enfim estariam sob posse e total controle de Navarro. O povo, como sempre cegamente acreditava que todo esse circo era para o bem da população.

 Já não existiam mais estatais. Pela instabilidade do regime, as empresas multinacionais se retiravam do mercado e iam embora para os seus países de origem, a inflação disparou, o desemprego subiu. Tudo isso fez com que muitos não pudessem comprar comida. Alguns começaram a furtar, roubar, assaltar. Fazer de tudo para conseguir o alimento para sua família. Péssimo erro! Haviam se tornado os “vagabundos” e “bandidos” que desejaram mortos alguns anos atrás. Bolshoi só atendia aos pedidos e exterminava-os. Alguns morreram de fome, outros foram mortos por causa da fome.

 Eu continuava a lecionar e voltei a comer ovos todos os dias da semana. Até que Navarro cruzou meu caminho.

 Existiam duas coisas em que eu não acreditava: A primeira, era a política. A segunda, que eu deveria ficar calado simplesmente por que alguém queria que eu ficasse.

 O grande ditador queria impedir o som da minha voz na minha própria escola. Isso eu jamais admitiria.

 Após a instauração do decreto pró Navarro, que proibia professores e servidores estatais de “doutrinarem as próximas gerações a se posicionarem ideologicamente contra o regime. “ Bolshoi queria proibir que pessoas exaltassem e compartilhassem falhas e projetos desumanos de um regime ditatorial. Eu fui acusado de doutrina ante regime e fomentação do caos.

 Eu já não era mais docente, também já não tinha nem ovos para comer. A comida me era servida uma vez por dia. Um creme amarelado de milho meio azedo e um copo de agua morna.

 Como pode imaginar, esse texto foi escrito de dentro de uma cela para presos políticos. Provavelmente o meu último, pois minha sentença foi a morte pelas mãos de Bolshoi. A execução está marcada para amanhã ao meio dia. Assim, carinhosamente espero alegrar o povo que defendeu a matança dos vagabundos. Afinal, acredito que hoje sou um deles.

 Deixo essa mensagem entre os tijolos de minha cela na esperança que alguém encontre e o divida com o resto do mundo, para que todos saibam o que houve em Brastívia.

 Caso viva numa realidade parecida, meus sinceros pêsames. A tendência é que não melhore.

Adeus,

Ramil Fesofurd.