Memórias
Ela chegou do nada, em um momento em que eu não esperava receber mais visitas. Aparecia e tomava conta do ambiente, colocava as coisas em ordem, mas ao mesmo tempo vinha com calma. E trazia suas coisas de pouquinho em pouquinho.
No início, vinha aos finais de semana, apenas num dia do final de semana, na verdade. Depois passou a vir os dois e ficar o final de semana inteiro. A primeira coisa dela que apareceu foi sua escova de dentes, trouxe de mansinho dizendo o quão era conveniente já que passava todos os sábados e domingos comigo.
Logo em seguida, súbitas aparições. Uma escova de cabelo, um creme pro rosto, alguns alargadores, tudo bem lentamente. Até que ela passou a vir alguns dias da semana também. No começo inventava as histórias mais mirabolantes pro seus pais, pra justificar a ausência. Depois que eles se acostumaram, mais dias da semana foram somados a conta. E mais coisas novas foram aparecendo.
Quando renovei meu quarto, pensei em tudo para acomodar dois, ao invés de um só. Afinal, já existiam alguns pertences pela casa que justificavam a presença de duas pessoas. Quando soube, lá veio ela, com uma maletinha que tinha o mickey estampado na parte de fora, e na parte de dentro tinha algumas de suas coisas mais preciosas. Aquela maleta foi nossa mesa de cabeceira por alguns meses.
Depois de algum tempo, tanta coisa apareceu, que o lugar já não era só meu. Era nosso, de fato. Era difícil afirmar com certeza o que era meu, e o que era dela, afinal, já havíamos comprados coisas juntos, trocado presentes. Ela tinha se espalhado por todo o lugar.
Mas os anos se passaram… E várias coisas foram sumindo.
Não a vejo faz um tempo. Está sempre muito ocupada, trabalhando, de viagem em cidades diferentes. Seus alargadores não estão na sua caixa de jóias. Suas gavetas estão praticamente vazias, com trapos que já não usava mais, seu lado do armário só tem cabides.
Mas, pior do que não encontrar seus artefatos, é encontrá-los, pois são cheios de memórias. Seus colares, seus livros, boa parte das coisas do apartamento que ela escolheu. Encontrá-los é como viajar no tempo, e lembrar de coisas maravilhosas, só pra retornar ao presente e ver quão merda é essa situação.
Acho que preciso limpar meu apartamento.
Ecleticamente boêmio e desesperadamente romântico. Cada pé na bunda rende mil cervejas e alguns poemas.