Quimera
1
Já estava ali há algum tempo, os olhos meio fechados pelo constante assédio do sono. Indagava se Annabel estava dormindo enquanto a observava deitada ao lado dele. Movimentou a mão esquerda precisando de algum esforço para que saísse debaixo do cobertor sem atrapalhar o sono dela. Ele percorreu os cabelos da garota com certo zelo, se concentrando na fronte, em uma distância que não chegava a um palmo de modo que vez ou outra poderia tornear seu rosto, passando pelo nariz um pouco proeminente e chegando até os lábios. Procurava conter o peso de sua mão para que demonstrasse não mais que ternura com seus cuidados.
Ela se remexeu um pouco parecendo ajeitar-se em meio aos travesseiros, mas ele mal hesitou, temeu, no entanto que a garota voltasse seu rosto para o outro lado como fazia com frequência em meio ao sono. Ele a abraçaria por trás então, mas não seria mais capaz de captar sua expressão. Gostava de observá-la, tanto quanto estavam acordados e enquanto ainda se revirava na cama. Ela dormia primeiro com frequência, embora ele tenha se recordado de uma vez em que ambos foram aplacados pela fadiga de modo que quando despertou mal pôde acreditar que já era dia. Estava acostumado com a noite, o escuro, a solidão, apreciava o céu sombrio e seus esparsos pontos luminosos que tremeluziam distantes ao que se passava na Terra – como pequenas velas luzindo em um quarto sem luz. Isso denotava acima de tudo irresponsabilidade, pois seus afazeres e compromissos eram tão alheios á seu sono quanto às estrelas á vida. Mas nesse momento não estava em casa e sua mente raramente regressava á esse ponto. Ali lhe era permitido divagar o quanto quisesse. Mas ali, também, havia coisas que lhe roubavam a atenção mais que o céu escuro quando estava sozinho á noite. E ali, também, não estava sozinho.
Houve um leve tique e ela ameaçou acordar, ele se conteve por um momento levando a mão até sua boca formada por uma linha tênue em cima e um lábio inferior mais grosso. Aquela parte desceu um pouco junto com seu dedo expondo os dentes que ela exibia tão frequentemente em vistosos sorrisos, ainda mais depois de se livrar do aparelho. E embora Annabel ostentasse essa satisfação ele não se sentira menos atraído por ela mesmo quando possuía aquele maquinário na boca, mas compreendia a sensação, afinal também passara pelo mesmo processo demorado.
Ela tinha uma expressão de criança como se aparentasse ser muito mais jovem do que realmente fosse e havia roupas que usava que ampliavam essa sensação, lembrava-se principalmente do jeitoso vestido azul que possuía. Aquilo era uma característica marcante de sua pessoa e em certo momento, quando expressou medo após um susto que lhe dera, esboçou um comportamento tão infantil ao afastar-se e pular que a principio ficara surpreso, mas depois foi difícil para ele conter o riso. Apesar disso a maturidade lhe era própria e compreendia razões e responsabilidades muito mais que a maioria, já sendo perfeitamente capaz de organizar sua vida inteiramente sozinha. Enquanto ele preferia se manter á parte em questões sociais e politicas Annabel já atuava em ambos os âmbitos, mas ele não podia negar que sua visão era, apesar de nobre e dotada de equidade, tocada por certa ingenuidade e otimismo. Esse altruísmo que já presenciara em determinadas situações se mostrava contagiante. Ela despertava nele uma empatia que desconhecia. O fazia querer ser melhor.
Assim, observando-a, ele a conhecia. Quando estavam deitados juntos até mesmo o tempo parecia passar mais devagar. Adorava aquela expressão contente que infundia certa alegria nele próprio, levando-o a sorrir quase que naturalmente. Todos na verdade apreciavam a companhia de Annabel, ela se tornara muito querida em todos os ciclos sociais que criara. Ele percebeu com um semblante melancólico que sentiria falta daquele carinho. Desejou de súbito que mesmo se em um futuro breve ou distante tomassem caminhos distintos ainda voltassem a se ver, como se pertencessem sempre um ao outro, talvez apenas para fugirem do mundo por alguns dias. Afastando problemas e responsabilidades, existindo apenas fora da realidade.
Seu rosto era salpicado por poros dilatados que percorriam um caminho na bochecha e cobriam o nariz. Os olhos dela se abriram, revelando uma negritude pungente. De dia eles adquiriam um tom mais amendoado, com esparsos e curtos riscos escuros que cortavam a íris. Percebeu que ainda acariciava seus cabelos e moveu-se a beijando no ombro o que a fez encolher-se. Seguiu ate o rosto sentindo a pele quente e fustigada pelo sol. Passou as mãos e a envolveu em um abraço pressionando-a contra seu próprio corpo. Houve um leve gemido. Ele continuou a beijá-la devagar, e moveu a mão cada vez mais para baixo, apalpando-lhe o seio franzino e seguindo pelo corpo delgado até pressionar um ponto entre as pernas. Foi recompensado com mais um gemido, o melhor som do mundo naquele momento. Puxou a coberta para ocultar a ambos.
2
Na manhã seguinte ela não estava mais lá, havia ido embora.
E, pouco a pouco, ele também foi.
Foto: Stonelady – Tumblr: http://stonedlady.tumblr.com/ +18